Wednesday, June 04, 2008

Reencontro com meu passado em Capanda

Crônica 14 Cacuso – Capanda

Esta era para ser mais uma viagem dentre tantas que ocorreram até então e tantas que irão ocorrer, a não ser por um detalhe. Capanda ! Estas letras significam, além de u ma localização no interior, as margens do rio Kuanza, uma hidroelétrica de grande porte, que foi construída pela Construtora Norberto Odebrecht. E este fato tem muito a ver comigo, pois em 1985 eu estava cursando o 5º ano de engenharia na Universidade Federal de Pernambuco enquanto estagiava em uma obra importante em Recife, o Viaduto Tancredo Neves. Esta obra havia sido calculada pela empresa de meu tio Waldir e liga a Avenida Recife ao Bairro de Boa Viagem. Foi algo marcante para a vida de estudantes como nós que estávamos tendo contato com diversas técnicas de construção de grande porte como vigas pré-moldadas com 30m sendo içadas por treliças corrediças, protensão de estruturas, etc. Boa parte delas ainda perduram até hoje, com inovações, é claro!

Eu integrava a equipe de fiscalização da empresa projetista que zelava pela qualidade na execução das estruturas em concreto.. Em Outubro, perto do final da obra, percebi uma grande afluência de engenheiros e trabalhadores de todos os níveis e qualificações. Achei estranho, pois estava ocorrendo algo inverso do natural. A Odebrecht deveria estar desmobilizando pessoal e no entanto ocorria o contrário. Procurei saber a causa daquele fato e me indicaram um cartaz que diza “Venha Construir Capanda em Angola”.

Procurei saber de meu amigo e colega de turma Jaime Ferraz, que na época estagiava na CNO. Ele me falou que Capanda seria uma usina hidroelétrica que a Construtora iria erguer no interior de Angola. Naquela época eu tinha uma pequena lembrança de toda a problemática da independência e da morte de Agostinho Neto, o principal articulador da independência, que se tornou presidente. Apesar de ser pré-adolescente na época (1975) lembro das filmagens que apareciam no Jornal Nacional e dos comentários de meu Pai sobre o tema.

Então eu tinha uma vaga idéia do desafio que aquelas pessoas teriam pela frente em um país africano em estado de guerra civil. Soube que boa parte da direção da nossa obra iria conduzir o empreendimento, inclusive o gerente de contratos, Engenheiro Delmar. Lembro-me que comecei a encará-los com sentimentos dúbios. Ora achava que estavam todos loucos, ora os considerava como seres superiores, que tinham a coragem de deixar para trás seu país e enfrentar aquela quantidade de desafios de um lugar naquelas condições.

A história da CNO e sua equipe, em relação a construção de Capanda e de outras obras de engenharia em terras angolanas, resultaria em um grande livro ou documentário épico, pois dela fazem parte vicissitudes como sequestros, mortes, fugas e evacuações heróicas que resultaram em tudo o que a construtora é para a engenharia no âmbito angolano e mundial. E boa parte do embrião desta história foi recrutado ali naquela obra do Viaduto Tancredo Neves em Recife.

Minha intenção não é de forma nenhuma fazer marketing para a Construtora Odebrecht, nem tenho nenhuma ligação atual, ou é minha meta futura ter (já que minha formação como engenheiro caminhou para uma vertente diversa da produção na construção), só me rendo aos fatos por mim presenciados.

A nossa aventura começou em Luanda quando o INEA solicitou-nos uma Nota Técnica que contemplasse o acesso a Capanda. Eu estava esperando esta oportunidade desde quando os engenheiros do INEA falaram desta hidroelétrica e eu a localizei em minha memória. A própria CNO havia solicitado este levantamento ao órgão, visto ela manter uma quase cidade no local de operação da usina de energia. Fui com mais 2 engenheiros novos e novatos na empresa, Josias e Caetano, e uma equipe do INEA a nos assessorar, chefiada pelo Arquiteto Angobrasileiro Armando e acompanhada pelos técnico António Pedro e pelo estudante de engenharia Célio.

Saímos muito cedo, antes de clarear e fomos na rota leste, passando por Viana e Maria Tereza. Entramos em uma via secundária, já por nós conhecida, com características de “picada#. Preferimos esta apesar de ser uma estrada em leito natural, pois as estradas nacionais estavam em piores condições do que esta para tráfego. Esta estradinha nos mantinha em contato com boa parte da natureza que a guerra não conseguiu acabar. A região era formada por uma floresta espessa. Entremeadas por áreas de savanas. Podia-se ver alguma fauna que se atrevia a chegar próxima a estrada, como macacos e veados. No meio do caminho fizemos uma parada técnica em uma povoação a margem da estrada e veio um senhor com uma gazela para nos vender. Josias, que é fanático. Por animais, enlouqueceu e quase comprou o bichinho. Foi necessária uma forte intervenção para que isto não acontecesse. Nossa viagem continuou com muitos chacoalhados e balanços.


Josias e a gazelinha

Desta forma chegamos a Cacuso perto das 17:00 hs. Cacuso aqui quer dizer um peixe de rio muito consumido por todos. Para nós seria a tilápia. Este peixe se tornou base da alimentação angolana.

Ali teríamos que encontrar o acesso a CAPANDA objeto de nossa vinda. Rapidamente identificamos a estrada e iniciamos nossa jornada àquela que seria uma das mais excitantes aventuras devido ao seu significado para mim.

Vimos pouco da estrada neste dia, pois logo escureceu e não houve como analisar o trajeto. Chegando a vila de Capanda, um local todo cercado e com guaritas para controlar o tráfego de entrada e saída, apresentei as nossas credenciais e fomos encaminhados para o refeitório.

Apesar da comida ser feita para grande escala, estava uma delícia e mais, foi uma maravilha entrar em contato com o tempero brasileiro novamente e principalmente no meio da África. O que mais me deu saudades foi o paozinho francês que era feito na padaria de lá. Deu para esquecer os pães carcaça dos portugueses de Luanda e lembrar das nossas padarias.

Achei estranho que todos os letreiros no refeitorio eram também traduzidos para russo!!! Foi neste momento que identifiquei aquelas figuras branquíssimas, jantando em uma mesa à parte e vários outros chegavam e sentavam-se próximos e conversavam. Os russos haviam elaborado o projeto de Capanda e trabalhavam na operação e manutenção da hidroelétrica. Por isto tudo era escrito em português e russo.

O Refeitório de Capanda
Após matarmos a fome fomos conduzidos aos nossos dormitórios que eram quartos para duas pessoas. Na Vila de Capanda existem dormitórios com níveis diferenciados. Os mais simples são para os trabalhadores especializados, a medida que os cargos aumentam de responsabilidade, aumenta a comodidade de cada dormitório. Há casas separadas para encarregados e engenheiros que trouxeram a família.

Fomos conduzidos para os dormitórios dos engenheiros. Eram bastante funcionais e simples, compostos de uma mesa de trabalho, um guarda-roupa e duas camas. O mais importante para nós estava no banheiro que tinha um chuveiro com água corrente, fundamental e um diferencial relevante para quem estava no interior de Angola. No dormitório havia ainda espaços de convivência que incluiam sala de televisão, bar, salão de jogos e sala de ginástica equipada. Tudo com informações em português e russo.

Mantive contato com o Engenheiro Rubens, responsável por minha vinda e este se desculpou, pois estava planejando fazer um churrasco para nós, mas houveram impedimentos profissionais que frustaram este nosso contato. Vida de Engenheiro! Comuniquei-lhe o nosso plano de trabalho e informei a hora de nossa partida no dia seguinte.

Saímos para dar uma volta na vila e identifiquei muitos equipamentos para o lazer do pessoal, como clube (com piscina), quadras de esportes, quadra de tênis, etc. Há ainda em Capanda um aeroporto que pode descer um Boieng 747. Tudo para que a permanência dos técnicos seja a mais salutar, aprazível e segura possível.

Uma vista das instalações da vila de Capanda
Pela manhã acordamos às 5:00 horas para nos preparar para os trabalhos. Conseguimos o café –da-manhã antes das 6:00 hs no refeitório e partimos para os trabalhos. Antes disso, fomos visitar a hidroelétrica de Capanda, a barragem propriamente dita, onde estão as comportas. Foi um momento bastante especial para mim, pois eu não parava de relacionar os dois momentos em minha vida profissional, onde nunca as variáveis de espaço e tempo atuaram tanto para separar duas situações que eram tão interligadas em minha mente – Limite entre as Províncias do Kuanza Norte e de Malange, em Angola e a cidade de Recife, Estado de Pernambuco, Brasil – Uma no ano de 1985 e outra no ano de 2006.
Para chegar até a barragem percorremos dois quilômetreos onde apareciam diversos equipamentos de infraestrutura, como estação de tratamento de água e pedreiras. Obviamente a barragem se loclizava em um vale e o que se vislumbrou logo de princípio foi o imenso lago provocado pela obstrução do leito do rio Kuanza. A medida que íamos chegando ao fim da estrada, a parede da barragem ia se mostrando com suas comportas. A manhã estava bem no começo, e havia uma espécie de de névoa encobrindo a barragem que tornava aquela visão algo mágica. O sol já havia nascido a algum tempo, mas estava ali bem próximo a linha do horizonte do lago, para emoldurar a estupenda paisagem do nascer do sol africano. fotos


Face à montante da parede da barragem


Face à jusante da parede da barragem
Por-do-sol no lago barragem de Capanda


Entramos no Land Rover do INEA e fomos para a rótula que seria o ponto de início dos nossos trabalhos. O trecho era uma estrada com boa plataforma e sum solo areno-argiloso como a maioria dos que vimos em Angola. Deveríamos elevar o terrapleno em diversos pontos, pois era evidente que a estrada estava abaixo do terreno natural estes locais.

Não encontrava uma rocha sâ ou já usada que me permitisse indicar como pedreira para exploração na obra. Repentinamente meu problema se resolveu a uns 30km de Capanda. À minha direita se divisou uma imensa concentração de rochedos que parecial formar uma linha a, mais oum menos uns 500m da estrada. Senti um alívio e anotei aquele afloramento no meu relatório. Ao mesmo tempo comecei a me incomodar com a beleza daquelas protuberâncias rochosas que estariam destruídas em boa parte de sua extensão. Elas pareciam gigantges a dançar em volta de um grande Quimbo (aldeia) rochoso. Bati algumas fotos do local e prosseguimos.

Ocorrências rochosas. O que seriam?


Ao fim da viagem fui conversar com os angolanos que nos assessoravam. Falei sobre as rochas e ninguém comentou nada. Só depois vim a saber que aquele é um dos parques histórico-naturais de Angola. Um grande destaque da viagem e que por si só valeria a pena viajar até lá. Era chamado de Pedras Negras de Pungo Andongo que são formações rochosas de grande beleza natural, que surgem repentinamente num terreno plano, onde dizem estarem marcadas as presenças da rainha N’Ginga M’Bandi, rainha do reino da Mataba (região de Malange) e do rei N’Gola Kiluange. Carregam uma áurea de mistério em torno deles, pois conta a lenda que, há séculos, ali existia um coliseu de torturas e bacanais da Rainha. Diz-se que existem até pegadas preservadas no local, atribuídas a N’Ginga M’Bandi. A cor negra provém de determinadas algas filamentosas que se desenvolvem nas águas absorvidas pelas rochas.

Pedras Negras de Pungo Angongo (foto Mário Tendinha)


Vista das Rochas de Pungo Andongo.


Claro que em Luanda fiquei revoltadíssimo por perder a oportunidade de explorar mais um sítio histórico deste país. Fiquei mais revoltado com a patrulha angolana que nos assessorava que não teve clarividência, ou conhecimento, de reconhecer o local. Mais revoltado fiquei comigo mesmo, por ter dado uma prova de amadorismo na faceta de explorador que eu me alto-alcunhei. Deveria ter me informado antes de partir para quais terras eu iria andar.

Para vocês um conselho, se precavenham deste erro pois a frustação é grande.

Ao final desta passagem relembro um momento em cima da parede da barragem de Capanda quando ficamos ali algum tempo a admirar tudo aquilo em volta e eu a imaginar o tanto de transformações que ocorreram naquele lugar, com aquela gente que transformou aquele lugar (como sobreviveram aos conflitos, engenheiros, encarregados, operários..?) e comigo próprio que me sentia apegado a tudo aquilo e me recordava de um certo jovem estudante de engenharia, com todas as indagações de uma profissão cheia de desafios e que revia suas próprias forças e procurava as respostas para as perguntas que fazia a si mesmo ao ver aquela fila de homens abnegados, no auge dos anos 80, em busca de seus destinos. Naquele momento de 2006 se fechava um ciclo na vida do jovem estudante com algumas respostas para tantas perguntas que ele fizera, dadas pelo engenheiro que ele se transformara. Fui despertado pelos outros dois que estavam ansiosos por iniciar os trabalhos e não entendiam aquela contemplação exagerada do amanhecer no imenso lago do rio Kwanza.


Saturday, January 26, 2008

Um Dia que ficará

Crônica 13 - A viagem seguinte nos fez voltar a Lobito que seria o ponto de partida. Teríamos que sair de lá e, pela EN 250, chegar a Alto Hama, região centro-oeste de Angola.. Estes caminhos já me eram conhecidos desde 2005, quando voltamos de nossa primeira temporada em Huambo (Crônica 7), na ausência de aeronaves, utilizamos esta via para voltar pelo litoral (EN 100). Encontrava-se em condições desesperadoras, mas foi nela que eu tive uma das visões mais belas de Angola. As montanhas do vale de Loundovale, cheias de histórias de emboscadas nos conflitos, mas de uma beleza fenomenal ao entardecer (fotos Crônica 7). Como sempre, éramos 2 delegações. A primeira com 3 engenheiros brasileiros e a segunda, a delegação angolana composta por 4 pessoas, 3 engenheiros e 1 arquiteto. Dois destes estavam com a tarefa de fazer reconhecimentos para a elaboração da proposta para fazer a desminagem da estrada.


Estrada já conhecida, portais, montanhas e histórias.

A companhia dos novos integrantes, (pois os outros dois -Edgar e Armando- já faziam parte da equipe de levantamentos), foi acima de tudo “engraçada”, pois parecia que os “gajos” tinham ido fazer turismo e pouco estavam ligando para o trabalho.

Nossa equipe que faz.

Encontramo-nos na cidade do Sumbe, almoçamos o bacalhau do príncipe e seguimos para Lobito pela EN 100. Nos instalamos (longe do Grande Hotel!!! – Crónica 7), em um lugar mais aprazível e funcional. No jantar fomos a um espaço que era um misto de restaurante e playground, que apesar do serviço ruim, tinha uma boa comida, além de ser muito bonito. Situava-se na praça onde se encontra o barco-monumento (fotos e descrição na Crónica 7).

O dia seguinte foi singular, não só pelo início da árdua tarefa de coletar dados da longa estrada a nossa frente, como também pelo fato de ser 13 de Julho, dia do meu aniversário. Era o primeiro que passava em terras africanas e quis o destino que ele fosse o mais especial possível. Em uma viagem bem no interior de Angola. Recebi os comprimentos de todos, brasileiros e angolanos e iniciamos os trabalhos.

A questão era dúbia de sentimentos. De um lado existe a necessidade de sobrevivência profissional, e de ouro existem as nossas necessidades humanas, como a de estar ao lado das pessoas que amamos nestas datas. Nesta distância e com a impossibilidade de comunicação, tudo se tornava mais difícil. Consegui diferenciar duas reações. A primeira a do sentimento de abandono, apesar das tentativas de comemoração mesmo, nestas condições. A segunda reação é a instigante sensação de chegar mais longe, que motiva certas pessoas, mesmo tendo que sacrificar datas, sentimentos e entes queridos. Nesta hora o despreendimento e a valorização do pouco que se pode conseguir para atenuar sofrimentos são as melhores alternativas. Então para mim sobrou um extenuante dia de trabalho, com muitas possibilidades de tirar boas fotos. Isto tudo fazendo o que mais gosto. Explorar!!!!

Assim explorei de dia uma região que havia passado somente à noite. Vales, aldeias, montanhas rochosas, cemitérios com suas sepulturas criativas e principalmente gente. Víamos sempre muitas mulheres trabalhando como vendedoras de frutas e verduras, lavradoras com suas enxadas, cozinheiras em feiras livres, etc. Tudo isto com a eterna companhia de seus miúdos bebês amarrados às costas.


Explorando tudo, vilas, vales e montanhas.

Quer seja no Sol ou na chuva, eles estavam ali, atrelados à suas mães. Passamos então por Bocoio e assim chegamos a Balombo, onde sentimos que não havia mais visibilidade para realizar qualquer tipo de trabalho. Procuramos por algum tipo de hotel que pudéssemos pernoitar e achamos a tal pousada digna da localização onde se encontrava. Enxerguei uma via de desafogo para a minha situação. Não são muitos os que tiveram a oportunidade de passar o aniversário em uma cidade no interior da África Austral, sem luz elétrica e a comunicação sendo realizada apenas por telefone via satélite.
Quando pus os pés em Balombo, procurei atenuar as sensações negativas pegando o Iridium (telefone por satélite) e ligando para o Brasil para falar com todos os meus. Senti então o fundamental de ouvir vozes queridas nestes momentos. Algo que preenche todas as lacunas.

A pousada encontrada era no estilo “interior da África”, com quartos diminutos com uma janela (fechada, para não me deparar com a mosquitinha de novo) e banheiros fora dos quartos, impraticáveis a qualquer atividade primordial e necessária .



Espaço para integração na Pousada.

Saí com meus companheiros de viagem com a intenção de não deixar a data passar em branco, mesmo em Balombo! As comemorações lá exigem uma boa dose de desprendimento. A opção de sair a pé foi uma aventura a mais, acima de tudo. Não enxergávamos nada a nossa frente e nos guiávamos através de alguma claridade vinda de estabelecimentos providos de geradores (o que acontecia pouquíssimo!).


Balombo meio-dia.
Balombo "by night"!

Ainda andava de resguardo etílico devido a malária (fazia 2 meses mais ou menos que eu havia contraído), mas decretei o final da abstinência naquela noite. Encontramos uma espécie de restaurante/bar/pousada/etc, o local mais propício a comemorações que estava ao nosso alcance. Apesar disto, havia um bom vinho português que regou a noite. E ali , naquela terra que suportou boa parte das andanças e atrocidades de Savimbi e sua UNITA, me senti satisfeito com o que havia sido me concedido. Não pela comida, acomodações, bebida, etc., etc. Mas por ter a plena certeza de que esta data irá ficar gravada e propagada devido ao fato de ter sido passada e festejada em Balombo, interior de Angola, África. Tenho fotos e testemunhas!


Comemoração em Balombo


E a vida continua...

Thursday, August 02, 2007

Crônica 15 - Avião, helicóptero, urubu e outros bichos

Crônica 15

Tive a liberdade de saltar vários relatos que poderiam gerar boas crônicas para escrever algo que foi completamente inusitado e que vale um bom texto. Vamos ver se sou capaz.

Atualmente estamos as voltas com a produção de um áudio-visual para respaldar tudo aquilo que está sendo realizado. Para isto, várias estratégias foram criadas com o intuito de conseguir imagens das obras. Desde percorrer normalmente as estradas mais próximas de carro, até fazer isto de helicóptero (helicóptero?!!!!). Pois é!. E mais, esta viagem seria para daí a dois dias. Quando me foi mostrado o roteiro, foi fácil identificar que a maioria das obras que estavam ali, eu as conhecia bem. Então, quem iria??? Eu é claro. Isto me foi dito enquanto me preparava para uma viagem para uma província no Norte do país. Como, em um certo momento da vida, decidi que não me arrependeria de nenhuma decisão que tomasse, quando ficasse velho (tanto é que estou aqui), topei a parada. Pelo roteiro eu teria que ir com a tripulação e a equipe de filmagem para passar 3 dias viajando por TODA Angola.

Logo vi que era pretensão demais dos meus colegas diretores. Haviam trechos nas províncias do sul, (como Cunene e Huíla), nas províncias do norte (como Uíge e Cabinda, a fração de terra sacada do restante do país) no centro (como Cuanza Norte) a Oeste (como Malange e Bié) e a oeste (Como Cuanza Sul). Achei a pretensão demasiada devido ao curto espaço de tempo dado para o início da aventura. Não se estala os dedos e um helicóptero aparece aqui em Angola. Apenas este motivo foi determinante para que a viagem fosse adiada. Passaram-se dois dias de buscas infundadas e nada de helicóptero. Então no final de semana passado ( ficou decidido começar as filmagens por terra, nos trechos mais próximos de Luanda. Fui com a equipe para Viana-Maria Tereza e Kafangondo-Catete. Nada de novo aconteceu, pois estes locais são sempre cruzados por nós e bem conhecidos.


Imbundeiro na estrada Viana-Maria Teresa

Surpresa foi o contato com a equipe de filmagem e identificar o meu papel nesta história, que eu achava que seria de um simples observador. Logo descobri, friamente, que seria determinante para a conclusão dos trabalhos. Apesar de Marcelo, o técnico responsável por todo o projeto áudio-visual, estar aqui a muito tempo (desde 2002), vi que não havia viajado pelo país e, óbvio, não entendia daquilo que ele estava filmando.

A viagem no helicóptero ficou marcada para a terça-feira ,dia 15 de maio. Neste dia acordei às quatro da madrugada e às cinco já estávamos na base aérea com o Major Frank, que estava encarregado de viabilizar este vôo. A espectativa era voar as 5:30 hs. O dia amanheceu e o major começou a distribuir impropérios para todos os números de sua agenda do telefone. “Cadê a tripulação que não chega?” Às 7:00 hs da manhã para uma Van caindo aos pedaços e dela desce um militar que começa a falar com o Major Frank. O Major depois vem a mim e, bastante constrangido, me fala: “Engenheiro Fernando, isto nunca aconteceu aqui, mas o caso é que todas as aeronaves estão proibidas de voar até uma segunda ordem. Trata-se de um comando direto do General que comanda esta frota. Fala-se em uma inspeção de surpresa às 9:00hs. Portanto o vôo está cancelado no momento. É melhor voltares ao seu escritório, que me comunicarei consigo mais tarde.”

Não é preciso dizer da frustação de todos que estavam lá e da sensação de insegurança por trás daquela notícia. A história por detrás dos fatos é que existem duas forças que estão a se digladiar na reconstrução do país. Estão a medir-se, tanto no comando de obras importantes, quanto e, principalmente, no aspecto político. Este trabalho que estamos a desenvolver é para promover as ações de uma das partes, ao qual o nosso trabalho de engenharia está direcionado. A outra, logicamente, não deve estar vendo com bons olhos este esforço de promoção da contraparte. Nesta situação específica, uma das suspeitas é que a informação do vôo (e suas intenções) deve ter vazado e a “entidade contrária” usou de sua influência militar para que este não acontecesse. Refletindo melhor, se estas supeitas tiverem algum fundo de verdade, concluí que deveria me congratular com esta "força" por ter tido o gesto magnânimo de ter embargado o helicóptero ainda em terra e não ter tido a triste idéia de interceptá-lo no ar.

Na sexta-feira, estávamos trabalhando normalmente, na programação de mais uma saraivada de notas técnicas, que nos iriam consumir o próximo mês de trabalho em viagens e elaboração de documentos. Uma reunião inesperada irrompeu na nossa “rotina”. Nesta eu soube que, não só o circuito com o helicóptero voltou às nossas metas, bem mais enxuto, é verdade, como teria um percurso a ser realizado de avião. Nesta nova programação, iríamos realizar pousos com um jatinho em diversas cidades do país onde estivessem acontecendo obras, para filmá-las e fotografá-las. Isto iria acontecer no sábado 15 de maio, e previamente escolhemos as cidades de Lubango, Benguela, Waco Kungo e Malange para os pousos. Elas foram indicadas por serem centros onde as principais obras estão a convergir. Teriam muitas outras que ficaram de fora por um motivo ou outro. O principal deles é que cupriríamos em cada local uma roda-viva de tarefas para voltar e voar novamente, e isto levaria tempo. Teríamos que descer no aeroporto, nos disvencilhar da burocracia angolana relativa a deslocamentos internos de expatriados, procurar as equipes do INEA que nos assessorariam em terra, rodar alguns (ou muitos) quilômetros para chegar aos locais interessantes, filmar, fotografar, retornar ao aeroporto e voar para o próximo destino no mesmo jatinho, que estaria a nos aguardar. Toda esta gincana deveria se encerrar em Malange, ANTES das 17:30hs, horário em que os pilotos ainda tinham autorização para voar de volta para Luanda.


Pela manhã, nossa equipe, composta por eu, Marcelo e o cinegrafista angolano Junior, chegou a Angola Air Service, proprietária do jatinho, às 4:30 da manhã. A nossa aeronave já estava preparada. Conhecemos os pilotos Tiago, nosso interlocutor português, comandante da aeronave e o co-piloto Sam, sul-africano, que nos passava as informações da viagem. Decolamos ainda no escuro rumo a Lubango. O jatinho era excelente e não havia turbulência. A hora e meia de vôo foi um sono só. Chegamos em Lubango e não tivemos muitos problemas com a burocracia. A tarefa lá não era fácil. Tínhamos que rodar 50km para chegar no objetivo principal, o trecho do acesso a cidade de Matala, com 132 km que a Andradre Gutierrez concluiu e está funcionando como vitrine do programa de reestruturação das estradas. Estes 50km faziam parte da tarefa, pois liga Lubango a este entrocamento de rodovias e estava sendo restaurado pela Planasul, empresa de capital brasileiro.


Nosso jatinho(direita), pronto para sair.

Ao sair do aeroporto, vi meus velhos companheiros de outras jornadas pelas terras da Huíla, o Director Florêncio Teófilo e Pistola, o grande contador de histórias.
Estavam sem entender muito o que viríamos fazer, mas sabiam da importância da nossa visita. Explicamos os objetivos e partimos em direção ao início do trecho. No entremeio do percurso, pude rever minha paixão pela cidade, que considero a mais deslumbrante de Angola. Não pude ver os melhores locais, mas o que foi visto bastou para encantar Marcelo, o diretor de áudio-visual. Ele percebeu uma mudança de mentalidade das pessoas, comparando com Luanda, era relacionada com a recepção dos visitantes e a limpeza da cidade. Entramos no trecho e começamos os trabalhos, com muitas oportunidades para imagens com as máquinas trabalhando na pista. Filmamos o estaleiro e o laboratório da empresa Planasul (fotos). Fomos em seguida para a rodovia em mais evidência, cuja restauração foi financiada pelo governo brasileiro e os trabalhos realizados pela Andrade Gutierrez. Aliás o governo brasileiro está com uma carteira de finaciamentos aqui em Angola da ordem de 1,2 bilhão de dólares, até a presente data (06/06/07), somente em rodovias.

Kandonga na estrada da Andradre Gutierrez

Eu já a conhecia da época das obras, mas vê-la toda sinalizada no meio das paisagens angolanas realmente causou um diferencial para quem gosta de ver as coisas darem certo na sua área de atuação. Andamos 15 km nela e retornamos, pois o nosso tempo estava indo pro gargalo. Mas foi o suficiente para perceber o excelente impacto que a nossa engenharia, tão criticada, está deixando no restante do mundo. E não é a toa que as nossas principais construtoras estão aqui.

Chegamos de volta ao aeroporto às 11:10hs e nos despedimos da nossa eficiente dupla de terra na província do Huíla. Aterramos em Catumbela, base militar da província de Benguela. Escolhemos descer na base, pois ela fica na beira da estrada que era o objeto de nossa atenção. Logo ao descermos da aeronave fomos cercados pelos militares que queriam saber quem éramos e o que iríamos fazer. Eu estava com minha pasta cheia de credenciais e não houve problemas em nos identificar e dizer o porque descemos ali.

O problema aconteceu com os nossos aconpanhantes em terra que não estavam presentes na base para nos receber. O que devia ser uma parada rápida, já começou com atraso de 30 min que foi o tempo perdido a espera da equipe de Benguela. Ao chegar os benguelenses, conhecemos Zelito que foi nosso anfitrião. Este não entendeu muito o espírito do levantamento e nos meteu por dentro do trânsito de Benguela para nos levar para conhecer o Engenheiro da Mota-Engil, empresa portuguesa que está duplicando a rodovia, (bem devagarinho!). O que era para ser uma parada rápida, foi onde perdemos mais tempo. Após conhecermoso tal engenheiro, voltamos ao trecho com quase uma hora de atraso. Começamos os trabalhos de filmagem e soubemos que o estaleiro que nos interessava estava a uns 2 km da pista. Entramos a direita em uma estradinha arenosa, como todas em Benguela. Reencontrei então a aridez daquela terra qie já recebe as influências do deserto da Namíbia. Não deixa de ser interessante, e porque não dizer bonito, aquela variação de tons de areia quando se sabe de onde vem e quão profundo estas características físicas chegam. Elas evoluem até virar um deserto.


O estaleiro da Construtora na "aridez" de Benguela.

Filmamos o estaleiro da empresa perdido naquele meio-ambiente inóspito (foto) e voltamos para a estrada (que é quase a beira-mar), até o rio Catumbela, já próximo a cidade de Lobito. Fomos ver como estavam as obras para a construção da nova ponte sobre este rio, por onde deverá passar o tráfego da estrada. Deverá ser uma ponte de um porte ainda não visto em Angola. Infelizmente só fora realizada uma leve terraplenagem nas margens, para abrigar o depósito de materiais.

Voltamos para a base aérea, onde os pilotos foram proibidos de ficar dentro do avião e, como não quiseram ficar nas salas de espera da base, equipadas com ar-refrigerado, mas longe do aparelho, estavam a nos esperar deitados à sombra da asa. Foi uma visão diferente e engraçada, a considerar, com o perdão do comentário sarcástico, que os dois, apesar de toda a tecnologia que comandavam, estavam menos confortáveis que um motorista de praça.

Voamos em direção a terceira etapa em Wako Kungo. Nesta eu tinha amplo domínio da situação, pois estava sob domínio de nossa empresa. Eu já havia contactado com Raymisson Cardoso, Engenheiro residente nosso lotado nesta cidade, e descrito mais ou menos o que deveria acontecer nesta passagem. Defini com ele as providências que deveriam ser tomadas. Ao descermos Berilo Medeiros e Eduardo Mesquita, outros de nossos engenheiros lotados em trechos próximos, já estavam a nos esperar. Eles trouxeram equipamentos que estavam faltando em Waco e que deveriam aparecer nas filmagens, ficaram então, com Raymisson para ajudá-lo nas providências para a nossa passagem. Neste dia tive orgulho de nossos colegas do interior, pois eles estrapolaram o que fora acertado e montaram uma verdadeira linha de produção de estradas, onde todas as etapas estavam contempladas. Além disto escolheram um cenário fora de série, aos pés da rocha Waco, que virou a página principal para a declaração do Ministro das Obras Públicas. Para conseguir tudo tiveram que convencer os empreiteiros e fazer com que toda a equipe ficasse a nossa espera sem almoçar até às 16:00 hs.


Linha de produção em Waco.


Corremos para o aeroporto, onde os pilotos estavam agora bem acomodados na sala de espera, em confortáveis poltronas. Lembrei da cena vista na Base aérea de Benguela e voltei a rir novamente. Ainda faltava uma etapa da viagem. O Comandante Tiago veio até mim e senteciou: “Engenheiro temos que ir direto para Luanda. Devido a hora não posso pousar mais em Malange.” Vi então a hora, eram 16:50 hs, para chegar até Malange eram necessários 40 min de vôo. Chegaríamos às 17:30 hs, impossível então sair de Malange a qualquer hora que fosse, devido a iluminação da pista. O Comandante já me informara que ele estaria proibido de pousar lá esta hora. Relaxamos então e aproveitei o vôo até Luanda. Não havíamos conseguido fechar a programação conforme o planejado, mas conseguimos 70% de ótimas imagens. E isto me fez ficar contente.

Ao chegar no apartamento morrendo de fome (não comera nada o dia inteiro) e tropeçando em meus próprios pés, recebi um telefonema do nosso Diretor: ”Fernando, o helicóptero está confirmado para amanhã”. Quase o mando às favas, mas a vontade de conhecer Angola por ângulos que poderiam nunca mais ter a oportunidade de ver de novo, me fez esquecer todo tipo de obstáculo e enfrentar uma nova noite mal dormida para sair de madrugada outra vez. Valeu a Pena!

Três e meia da manhã em pé novamente, dia de Domingo (20 de maio), quando todas as pessoas normais estão dormindo, acordo e me preparo para sair. A equipe já estava a minha espera. Chegamos à Base e esperamos o Major Frank. Ele chega e começa a espera pela tripulação. Cinco horas da manhã passa a Van com a tripulação RUSSA. “Mas Major, como vamos fazer para nos comunicar?” Foi o primeiro questionamento. “Bem, eles falam inglês, mas tem um deles que entende português e espanhol. Não sei se foi escalado para esta missão.” Bom já comecei a pensar na possibilidade de usar meu inglês macarrônico (que mal ou bem tem me salvado de certas situações). Mais uns dez minutos aparece um carro de passeio com dois homens à paisana, que desconfiei, lógico, serem oficiais. Nos pediram para entrar no carro e nós três (eu, Marcelo e o cinegrafista angolano Junior) nos apertamos no banco de trás com os equipamentos no colo.

Entramos na pista de aeronaves e uma confusão de pessoas com equipamentos foi surgindo a nossa frente. Esses equipamentos se transformaram em aviões e helicópteros militares. O veículo se dirigiu para uma área onde claramente se identificavam as aeronaves russas. Imensos Antonovs, Tupolevs, Illyushins chamavam a nossa atenção, devido ao gigantismo. Equipes dedicadas a manutenção dessas aeronaves estavam a trabalhar já há muito tempo. Todas elas compostas técnicos brancos e galegos, obviamente russos. No meio daquele plantel aéreo identifiquei os nossos Tucanos, com seus desenhos peculiares, na ponta dos aviõezinhos, formando uma boca de tubarão. Eram usados para treinamento de pilotos de caça. O carro parou em frente de um grande helicóptero branco. Nele vi a nossa tripulação trabalhando arduamente para a missão que iria começar dentro em pouco. A equipe era composta por cinco pessoas. Três com macacão cinza, entre os quais, dois mais velhos na faixa de 35 anos e um bem mais jovem, este com seus 25 a 27 anos, que deduzi seriam os pilotos e o engenheiro de vôo. Os dois restantes eram mais velhos ainda (faixa dos 50 anos), estavam à paisana e se dedicavam muito mais a mecânica do veículo que os outros. O Major Frank chegou e entabulou uma conversa com a tripulação, em russo! Isto se deve a boa parte dos técnicos e oficiais de Angola, terem suas formações na antiga União das Repúblicas Socialistas Sovièticas-URSS. E eles ficavam uma ano a mais do que o tempo de seus cursos superiores. Este ano a mais era exatamente para o aprendizado da língua. E isto ocorreu com engenheiros, médicos, oficiais, etc. Principalmente entre as décadas de 70 e 90.

Os Tucanos Brasileiros na Base Aérea

O Major me chamou e apresentou alguns da equipe russa, Esvânia era o jovem piloto e Alexiev era o engenheiro de vôo/piloto e (felizmente) o nosso interlocutor que falava um português misturado com espanhol e inglês. O Comandante não se prontificou em nos conhecer, ficando em seus afazeres, subindo e descendo da aeronave (percebi que se devia a barreira da linguagem). A partir deste momento, todas as nossas conversações com a equipe eram dirijidas ao simpático Alex, que também gostava de filmar com sua câmera. Definição do roteiro, forma da aeronave se comportar na hora das filmagens e como se deveria posicionar em relação a estrada, foram as orientações que nossa equipe passou aos russos. Eles tinham um mapa de Angola, bastante detalhado, que tornou mais fácil a minha tarefa inicial de indicar os nossos objetivos. Mostrei assim que deveríamos ir para o sul pelo litoral até atingirmos a cidade de Benguela. Lá deveríamos filmar a via expressa entre Lobito e Benguela. Depois tomaríamos a direção leste, em direção a cidade de Caála. Nela filmaríamos a estrada até a cidade de Huambo. Daí tomaríamos a direção norte acompanhado o corredor de obras da EN 120 até Luanda.

Foi a hora dos russos nos passarem as informações da aeronave. O helicóptero era um MIG 25, prefixo 1881, da década de 80, e apesar da idade estava muito bem conservado, aparentemente, é claro. Ele iria voar a uma velocidade equivalente a 250 km/h. Não haviam cintos de segurança à mostra. Os bancos eram retráteis e colados às paredes, voltados para o interior. Deveriam caber umas 15 pessoas dentro. Tinha um tanque de combustível reserva no espaço interno, que atrapalhava os passageiros. Havia uma bagunça, parecida com a de uma oficina mecânica, que atrapalhava mais ainda. Alexiev informou que as escotilhas abriam, facilitando quem desejava tirar fotos. Proibiu, é claro, de se jogar qualquer coisa para fora. Como norma de segurança, delimitou uma área, próxima à porta, e proibiu a permanência de qualquer um nela enquanto a porta estivesse aberta na hora das filmagens. Ressalvou ele e Junior, o cinegrafista, o qual passou a explicar sobre o cinto que teria de colocar nele nesta hora. O cinto pegava pelas coxas e pelo tronco com um cabo de aço às costas. Alex me lembrou que deveríamos descer em Huambo para manutenção e abastecimento.


Aeronave da missão - Helicóptero MIG 25

Chegada a hora da partida os russos começaram a se agitar e um dos mecânicos desceu da aeronave para olhar os rotores. Estes começaram a funcionar e a produzir um barulho, que não havia possibilidade de comunicação dentro do aparelho, juntamente com uma ventania muito forte ao seu redor. Olhei pela escotilha e a ventania estava fazendo com que as hélices dos tucanos brasileiros rodassem. O mecânico que estava fora ficou olhando para o rotor principal e fazendo sinal de positivo para a tripulação. As portas foram fechadas e a tripulação se posicionou. O helicóptero começou a taxiar na pista, contornando as outras aeronaves estacionadas. E então começaram as surpresas de uma viagem que ficará marcada para sempre em minha lembrança. Em cada aparelho contornado começou um ritual que me fez repensar a imagem de frieza que eu tinha sobre o povo russo. Todos os membros das equipes de manutenção que estavam em terra e dentro das aeronaves começaram a acenar e a celebrar aquela equipe que partia. Era muito emocionante ver que de cada gigante de metal estacionado, saiam maozinhas das janelas dos pilotos para saudar os colegas em missão. Todos os mecânicos pararam seus afazeres para se perfilarem e desejarem boa sorte a aqueles que partiam. De aeronave por aeronave aquilo ia acontecendo. Realmente aquele calor humano russo foi fundamental para quem estava nervoso devido a responsabilidade do trabalho a ser feito e ao desconhecido que aquela tarefa representava. Aquele episódio me fez ver a importância de tomar cuidado com os pré-julgamentos, principalmente os que se referem a uma população inteira.

O helicóptero chegou a uma área que parecia ser o heliponto. Parou de taxiar e se preparou para voar. Nesta hora me senti desconfortável. A sensação de alçar vôo sem estar atado por um cinto de segurança não foi muito bem recebida pelo meu cérebro. Finquei os dedos nas extremidades dos bancos de metal e esperei a decolagem. Esta se deu muito mais calma e suave do que eu esperava. De repente já estávamos ganhando altura e depois voando por sobre Luanda. O barulho era muito grande e toda a comunicação era feita por sinais ou diretamente no ouvido do interessado. Isto me fez lembrar o ótimo filme “Diamantes de sangue”, que se passa em Serra Leoa, sobre o tráfico de diamantes na África, inclusive em Angola (com Leonardo de Cáprio e Jennifer Connely - wwws.br.warnerbros.com/blooddiamond/). Nele há uma cena onde os protagonistas viajam em um helicóptero do mesmo tipo e conversam normalmente dentro dele. Para mim, depois de passar por aquela situação, isto é pura fantasia.

Passamos pelas favelas próximas ao aeroporto e voamos pelos bairros mais nobres em Luanda Sul. Os dois pilotos (o Comandante e Esvânia) procuraram ir se aproximando do litoral, mas antes tivemos um encontro com as curvas insinuantes do rio Kuanza e toda a vegetação nativa que o margeia, e forma um mosáico de florestas abertas e savanas. Eu ficava cada vez mais deslumbrado e empolgado com a oportunidade que estava tendo. A sensação que eu tinha era a de estar em um velocíssimo automóvel, com a janela aberta, voando a 300 ou 400 metros de altura sobre uma terra quase virgem.


Aeroporto 4 de Fevereiro visto da aeronave.

Interior da Aeronave.

O aparelho chegou então próximo ao litoral da província do Kuanza sul e eu ficava cada vez mais impressionado com a beleza das paisagens. Meu dedo não parava e qualquer olhada era um motivo para bater foto. Comecei a perceber que as praias iam sumindo e o litoral chegava ao mar em alturas variadas, os chamados fiordes. A constatação foi simples:- Até Benguela a maioria do litoral de Angola é alto, sem praias. Isto quer dizer que a beleza do litoral é diferente do nosso. Onde há praias existe uma aldeia ou cidades. E assim foi, passamos pela praia de Caboledo, por Porto Amboim, Sumbe e mais um pouco chegamos a Lobito para o nosso primeiro objetivo.

Chegando ao litoral.

Praia de Caboledo.

Fiordes Angolanos.

Praias

Cidade do Sumbe.


Em Lobito, Rio Catumbela em seu leito canalizado.


Hora da filmagem.


Chegada a Benguela.


Entorno da rodovia Benguela/Lobito

A aeronave se posicionou em um ângulo de ataque e dentro Alexiev saiu da cabina e preparou Junior com o cinto de segurança. Abriu a porta e sentou-o em um banco que se prendia ao lado da porta. O helicóptero partiu para uma posição lateral à rodovia, que permitiu viasualizar todos os seus detalhes. Vi os locais que havia visitado no dia anterior e a calha do rio Catumbela me chamou mais atenção. Ela serpenteava no meio da cidade do Lobito. Passei então a orientar os pontos onde seria mais interessante o registro de imagens. Como esta rodovia não era extensa (15 km), voltamos filmando pelo outro lado após chegar a Benguela e antes de tomar o rumo de Caála.

Ao chegar a Lobito novamente os pilotos fizeram uma curva de 90 graus para a direita e começaram a ganhar altura. Alexiev recolheu os equipamentos de segurança e fechou a porta e voltou a cabina. Começaria ali uma das maiores emoções da viagem. Os pilotos, guiados por seus instrumentos, se voltaram para a direção de Caála e este trecho entre estas duas cidades foi o mais extasiante que eu já tivera oportunidade de ver em todo este tempo passado em Angola. Acho que muito dificilmente verei paisagens africanas tão maravilhosas como vi nestes trinta minutos de vôo. As paisagens se alternavam entre rios com vales belíssimos e montanhas que mostravam sua imponência com lugares inóspitos onde poucos (ou ninguém) haviam estado.




Vales e picos do trecho sobrevoado entre Benguela e Caála.

Nestes vales tentei fixar os olhos para ver se via algum tipo de animal (elefantes sempre foram o objetivo). Nada! Nunca perdi a esperança de vê-los. Mas se mesmo de helicóptero não consigo, está ficando cada vez mais difícil mantê-la. A aeronave seguia diblando os obstáculos das grandes montanhas e nos oferecendo sempre novas e impressionantes paisagens. Nunca foi como nas dezenas de vôos que fiz de avião. O Cacimbo (camada de nuvens cinza que se alastra por toda Angola) e a altitude dos aparelhos nunca nos mostraram a face deslumbrante destas terras.





Maravilhoso, mas e os elefantes hein?!

Alexiev de repente sai da cabine e entra na área onde estávamos. Isto queria dizer que o próximo objetivo se aproximava. Caála estava se mostrando aos poucos com suas planícies. Algumas casas foram aparecendo e logo após a estrada. Esta em estado precário, contra a informação que eu tinha de uma estrada com sua restauração quase completa, faltando apenas alguns serviços para se concluir. A equipe estava esperando que eu me pronuciasse para iniciar as filmagens. Só autorizei quando em um certo ponto percebi o início do revestimento novo na estrada tendo assim a certeza dos serviços de reabilitação. Realmente a estrada estava em ótimas condições . Em meio a isto algumas lindas vistas apareceiam para nossos olhos. Foi assim de Caála a Huambo.

Estrada Caála-Huambo.

Foi interessante chegar daquele modo a Huambo, cidade que visitei por três vêzes, e verificar o ordenamento urbano da cidade. Ela foi projetada pelos portugueses e tinha o nome de Nova Lisboa antes da independência. Verifiquei por cima, toda aquela ótima distribuição de espaços, que havia percebido por terra. O helicóptero contornou a cidade em busca do aeroporto e eu continuei a observar, enquadrando os bosques e áreas verdes urbanas, que havia visto em 2005 e 2006. Chegamos finalmente ao aeroporto e descemos em uma área restrita. Restrita aos aviões, pois logo que descemos fomos rodeados por vendedores de frutas. Achei uma situação totalmente inusitada, uma área de aeronaves com aquele pessoal todo ali. Ao meu espanto, Esvânia repondeu sem dar a mínima importância ao episódio, comprando um saco de laranjas. Estes russos são realmente muito safos . Maior prova disto tive quando o mecânico que foi no vôo começou o seu trabalho de manutenção, abrindo toda a parte superior do aparelho. Ficamos observando aquela peças serem retiradas, limpas e recolocadas no lugar. Fiquei me perguntando se alguma fosse mal colocada que efeito isto teria no vôo. Procurei não ver mais aquilo e sai do aeroporto com Marcelo para tomar umas cervejas. Terminei achando os deliciosos morangos de Huambo, que me foram vendidos bem mais caros que na cidade. Comprei assim mesmo, para ter, à noite, um prazer especial naquele dia sem precedentes.

Cidade de Huambo.
Ao voltar para o aparelho, vi que o mecânico já havia concluido seu trabalho e o processo então seguia com o reabastecimento do aparelho, em outra posição do aeroporto.

Novamente repassei a Alexiev a nossa rota daí por diante. O comandante veio participar da conversa. Eu disse que deveríamos seguir a rodovia de volta a Luanda, margeando-a. Em alguns trechos fixei pontos onde poderíamos pular, pois as obras ali não nos mostrariam nada. O Comandante então me disse que não haveria problema. Interessante este aparelho. Estando com calor pode baixar naquele riacho e tomar um banho; estando com fome, pode baixar perto de uma aldeia, comprar uma galinha, mandar matar e comer; estando com vontade de ir no banheiro, baixa em qualquer lugar que é lá. Tudo pode ser feito.

Levantamos vôo e novamente vi o esquadrinhado de Huambo. Partimos rumo a norte pela estrada nacional EN 120. Então o bicho pegou! O aparelho agora voava baixo e os pilotos ficavam ziguezagueando para fugir dos morros que ficavam ao lado da estrada. Aquilo não fez bem para o meu estômago. Tive náuseas o tempo inteiro, com o agravante de ter que ficar ligado no trajeto da aeronave. Os primeiros locais a tripulação acertou, mas houve lugares que pedi para pular pois nenhuma movimentação de obra havia acontecido. E comprovei o que falara anteriormente. O aparelho se afastava da estrada, ganhava altura e em poucos minutos aparecia exatamente o local que eu queria, sem maiores problemas. Parecia um videogame. Belo sistema de orientação.

Trabalhos de terraplenagem em Huambo e Alto Hama.

Ponte sobre o Rio Keve restaurada (lembram, Crônica 7).

E foi assim que, meio verde devido ao enjôo, passei por Alto Hama, Waco Kungo, Quibala e Munenga, locais que fizeram parte das minhas atividades em Angola, as quais muitas passagens foram relatadas aqui nestes posts.


O Forte de Quibala.

Quibala, cidade destruída pelos conflitos.

Pousamos na Base Aérea de Luanda sem uma viva alma para nos receber naquela tarde de Domingo. Ficamos a observar os russos nos preparativos de checagem final dos equipamentos e vedação da aeronave. Nos despedimos de todos os integrantes da tripulação e uma Van os levou para longe de nós.

Ficamos lá os três no meio daquelas máquinas todas sem ver ninguém. Não adiantava ligar para o Major que ele dizia estar chegando. Fomos ficando, ficando, ficando… Após 45 minutos de espera, nos atiramos na frente da única Van que, por sorte, passou para pegar uma outra tripulação que estava para chegar. Imploramos ao motorista que nos tirasse dali, pois fôramos esquecidos. Ele como bom angolano, não queria abandonar a sua tarefa para nos socorrer. Depois de um longo trabalho de convencimento ele nos deixou fora da Base. Foi assim que terminou estes dias de aventura aérea. Na rua, sem transporte, esperando...

E o urubu, o que tem a ver com a história? Bem, este foi o apelido que ganhei por aqui depois desta maratona toda. Até agora ainda não me assumi como tal, mas se é pra ser urubu, que pelo menos seja Urubu-rei.