Wednesday, October 11, 2006

Crônica 10 - Uige e depois de Negage a Lucala

Esta terceira temporada começou a mostrar seus desafios logo no próprio embarque para Angola, em Recife. Eu já esperava uma resistência de Matheus (meu filho,9 anos), pois ele agora já conhece todos os pontos positivos e negativos da experiência de ter o pai trabalhando muito longe de casa. Mas a sua reação me surpreendeu pela intensidade. Na hora da despedida, ele me abraçou e não me deixou partir. Não sei de onde ele tirou tanta força, pois eu não consegui me soltar (acho que naquele momento as minhas desapareceram). Sem a interferência de todos os que estavam ao redor eu não teria conseguido viajar sem deixar um trauma muito grande. Só que o trauma ficou comigo, sinto que estou aqui pela metade. A outra ficou com ele.

Os desafios continuaram… Partimos na segunda-feira, dia 02 de Maio de 2006 numa viagem que eu, em meus pensamentos mais recônditos, nunca quis que chegasse, a cidade e a província do Uíge que se localizam no centro-norte de Angola. Quando da nossa chegada em Agosto de 2005, esta província estava isolada pelas autoridades sanitárias. Motivo, uma doença degenerativa, sem cura, cuja transmissão podia ser realizada até pelo suor, ou seja, pelo contato. Este flagelo, que na região teve proporções epidêmicas, atende pelo nome de Marburg. Agora que a situação foi controlada pelas autoridades (com apoio das ONG´s), a urgência por melhorias das ligações rodoviárias nos enviou para lá por cima de qualquer risco que a moléstia ainda pudesse oferecer. O medo se abateu em todos nós brasileiros que teríamos que enfrentar mais este desafio. Contudo, a curiosidade de ver que tipo de terra gerou condições para desenvolver tal calamidade e em que circunstâncias ela se encontra depois dos esforços para seu extermínio, contribuíram para que entrássemos na Nissan que nos levaria até o Uíge.

Outra razão que me mobilizou para a nova empreitada foi uma notícia estampada no “Jornal de Angola”, datada de 21 de Março de 2005, cujos títulos são possíveis identificar na reprodução abaixo:



Vi nestas reportagens a oportunidade de entrar em contato com a fauna de Angola. Se estes animais estão dando trabalho aos agricultores, é porque ainda existem em quantidade próximo as áreas habitadas. Os hipopótamos eu não consegui ver na província do Bié (Crônica de Luanda 7), mas pode ser que agora eu consiga ver os tais elefantes que estariam dando prejuízos nas colheitas do Uíge, como diz a reportagem. Obviamente os elefantes são mais mutáveis que os hipopótamos, podendo se deslocar a distâncias maiores. Quem sabe, do alto das montanhas, por onde a estrada passa e permite que visualizemos os magníficos vales africanos, não consigamos ver uma manada, ou quem sabe um desgarrado, um filhotinho já serveria…

Iniciamos a viagem numa manhã fria e enevoada. Até a cidade do Uíge foram 370 km de estrada de péssima qualidade. Estávamos em 9 pessoas: Eu Janilson e Sidiclei, brasileiros. Armando, António Pedro e Célio, angolanos do INEA. Baba Jr., Engenheiro jordaniano e os motoristas Santos e outro que agora não lembro o nome, ambos angolanos.

Foi interessante o contacto com Baba Jr. Um engenheiro filho de empreiteiros, que estava interessado na execução dos serviços desta estrada. Com ele nos aproximamos um pouco da cultura árabe, principalmente na área de engenharia. Terminamos por verificar que a situação dos engenheiros na Jordânia não difere muito da dos engenheiros brasileiros, no que diz respeito a valorização. Ouvimos sua história de fugas desde o Oriente Médio (na década de 70), quando criança, até aqui em Angola, onde sua família fugiu dos conflitos. Ele é mulçumano, mas têm uma mente bem aberta em relação as privações que sua religião impôe, (adora tomar cerveja, coisa impensável na sua religião, como tenho observado na imensa comunidade árabe aqui em Luanda), a única coisa que ele preserva, em materia alimentar, é a abstinência por carne de porco. Na verdade seu nome é Ibraim El Assad. Baba é papai em árabe. Como o seu pai tem uma grande influência aqui em Angola e é conhecido por Baba, o filho foi alcunhado com o Jr.Havíamos levado nossas provisões, (inclusive estreamos nosso fogareiro a querosene), mas o municiamento de Baba era especial, pois ele trouxe todos os enlatados da Jordânia e dos Estados Unidos. Para um sujeito que adora experimentar tudo em materia de degustação, as provisões de Baba foram uma festa para mim. Havia o feijão “Chili Beans”, que misturamos ao nosso feijão preto (meio estranho, mas ficou bom! Afinal tudo era feijão.), havia um milho doce com um molho, que era uma delícia e claro, suas pastas árabes, cuja mais gostosa era uma de gengerlim. Baba trouxe um saco de cebola crua, que em cada refeição ele ia dizimando das formas mais variadas. A mais esdrúxula acontecia quando ele cortava uma cebola média em três rodelas grossas, colocava-as no pão, passava uma de suas pastas (que ele variava.) e comia avidamente aquele estranho e turbinado sanduiche. Ao final dos três dias de convivência o saco de cebolas continha apenas um quarto do seu conteúdo original e tenho ceteza que 70% da quantidade consumida foi só por Baba Jr. Sobre isto ele disse “Cebola é bom, limpa o organismo”. Bom, desse jeito o organismo de Baba deve estar muito sujo, ou então ele deve ter mania de limpeza interna.

Encontramos com Baba Jr. Em uma cidade chamada Caxito, capital da província do Bengo. Ele nos havia prometido um caminhão cheio de provisões, com barraca de camping, etc. Veio mesmo com uma carrinha meia-bala e com metade do prometido em mantimentos. Mas foi bom! As promessas dos empreiteiros são assim mesmo! O que valeu mesmo foram a convivência e a troca de experiências de vida que nos pudemos desfrutar.

A estrada que leva a cidade de Uige são 320 km em condições ruins, que vencemos de forma regular sem muito entrevero. A chegada foi cercada de muita apreenssão e curiosidade. A informação que nos tínhamos era que o cinturão sanitário havia funcionado e não haviam mais casos de Marburg desde julho de 2005. Comecei a ter uma visão da cidade totalmente ligada com a doença. Uige nos apareceu como uma cidade grande, com vários prédios que remontam as décadas de 60 e 70. A arquitetura então vem destas décadas, pois nada, que valha a pena notar, foi construído após este período. Ele marca a época do encerramento do período colonial português e, consequentemente, a finalização forçada de seus investimentos e também da manutenção destes prédios. Não observei as marcas da guerra, embora saiba que ela existiu em Uige.







A cidade do Uige, seus fantasmas e visitantes.


O mais inquietante eram os fantasmas que rondavam a cidade, tornando-a mais sombria do que ela já estava. A região vai levar alguns anos para recuperar-se moralmente desta tragédia que ceifou centenas de vidas, além do atraso econômico inivitável. Para mim a única maneira que achei para fugir dos fantasmas do Marburg foi ficando no meu quarto na pousada, curtindo o meu mais recente vício – “Cem anos de solidão” de Gabriel Garcia Marquez, livro obrigatório para quem está querendo sair de sua realidade e viajar para um universo mágico. Neste caso nada mais adequado.

Pela manhã tiramos fotos e rumamos para uma nova etapa a 36 km de distância que se iniciaria na cidade de Negage. Pelo caminho voltei a pensar na notícia do Jornal de Angola e sempre apurava a vista nas paisagens, curtindo a minha esperança.

Negage é uma cidade menor que Uige, mas tem uma aparência mais viva, apesar de tão próxima. Espaçosa e espalhada como as cidades do interior de Angola, não havia prédios, mas havia mais burburinho e vivacidade.


Negage e o burburinho.


Ao começarmos os trabalhos notamos que a estrada estava em boas condições, em relação as demais estradas angolanas. Havia muita dificuldade de trabalho devido ao intenso matagal na borda da via que dificultava ver qualquer milímetro além da plataforma. Daí voltei a pensar nos elefantes. Assim seria impossível vê-los. Mas quando o matagal dava uma folga e se vislumbrava algum vale, lá estavam os olhares ansiosos a procura de sinais de movimento.

Cadê os elefantes?


As aldeias iam se sucedendo e mostrando cada uma sua forma de edificações, que depende de região para região. Nesta, as habitações eram feitas com uma espécie de tijolo maciços de adobe e cobertura de palha, sempre. Em uma destas aldeia, tirei uma bela foto, onde a meninada se perfilou embaixo de hastes que armazenam sementes para a plantação. Queriam ver o “Chindele” (branco) que estava com uma máquina a tirar fotos.

Olha o Chindelle!

Alguns quilômetros adiante, começamos a ver uma quantidade enorme de carcaças de viaturas bélicas: Carros de assalto, jipes, caminhões, ônibus: Ao longo de aproximadamente 3 km estas ferragens calcinadas foram vistas, formando um verdadeiro cemitério de ferro-velho, o que coincidiu com uma súbita piora das condições da estrada, onde buracos extensos e de características diferenciadas dos ocasionados pelo desgaste do pavimento, bem mais profundos e ainda com bordas do revestimento. Santos, nosso motorista, nos informou que ali houvera uma grande ofensiva da UNITA sobre o comboio das tropas do exército, com aquele resultado que estávamos vendo. Os buracos na estrada eram provenientes dos morteiros que cairam sobre o comboio e das minas que já estavam preparadas na própria estrada e nas áreas adjacentes a ela. A tática era preparar um local propricio (como uma baixada) e minar a a área toda. Na hora do ataque, os extremos do comboio eram assaltados com morteiros, provocando a debandada geral de todos os carros sobre a área minada e isto tudo com apoio de fogo cruzado. A sensação de andar por entre aqueles esqueletos metálicos era a pior possível. Por vezes achei que havia ainda fumaça saindo das ferragens. Ao mesmo tempo eu não queria parar de olhar aquilo tudo, pois todas as cenas do que poderia ter ocorrido me vieram a mente como em um filme de guerra, só que ali tudo havia sido verdade.

Carcaças pelo caminho.


Saindo da antiga zona de conflito, nos deparamos com uma aprazível localidade chamada Camabatela. Era uma cidadezinha com ruas largas, praças arborizadas e casas de arquitetura portuguesa da primeira metade do século passado. As ruas bem cuidadas e limpas davam um ar de zelo que não encontraríamos novamente nesta viagem. Camabatela se situa já na província do Kuanza Norte e o que acabou nos chamando mais atenção foi a novíssima igreja, que, de frente, mais parecia um castelo mouro. Na vista lateral se observava a imponência das construções religiosas, só que nesta, a se ressalvar o gosto de cada um, se verificava uma certa dose de alegria nas suas formas e cores. Infelizmente estava fechada e não pudemos comprovar o que os arquitetos fizeram internamente.

Igreja de Camabatela.

Demos prosseguimento a viagem pensando em retornar para dormir em Camabatela. Pelas condições da estrada verificamos que o retorno era pouco provável, já que o trabalho estava rendendo bem e nos afastávamos cada vez mais de nossso propósito.
A próxima opção para dormir vinha com um nome meio estranho que misturava rítmo com fruta, o nome da cidade é Samba-Caju. Apesar deste nome cheio de swing, Samba-Caju apareceu com um ar de mistério ao entardecer. Não sei se pela hora, não sei se pela Igreja com os campanários das torres parecendo chapéus de bruxa, o fato é que aquele ar tinha algo de mágico e pasmem, familiar! Procurei na memória o que ou onde aquela localidade perdida no meio da África estaria me lembrando. Teria que ser algum lugar de inusitado e sem precedentes, por onde eu houvesse passado. Acampamos na praça ao lado da Igreja-dos-campanários-de-bruxa, e fizemos um banquete juntando nossas provisões com as de Baba Jr. Logo juntou alguns moradores curiosos e com eles veio um pôr-do-sol carregado de nuvens pesadas.

Igreja de Samba-Caju
Praça onde almoçamos/jantamos.

Antes que terminássemos nosso almoço/jantar, já estava caindo raios ao redor e dentro de Samba-Caju. A tempestade veio para tornar tudo mais sinistro. Encontramos uma pousada onde os quartos tinham portas e janelas feitas de chapas de ferro e dentro sentia-se a sensação de estar em uma cela de prisão. A noite veio negra mesmo, pois a cidade não tinha luz e não havia luar. A luminosidade daquela hora era feita exclusivamente pelos raios incessantes que caiam sem dó nem peidade em Samba-Caju e haja água! Sem ter muita opção, fomos dormir. O dono da pousada havia providenciado um candeeiro para cada quarto. Para mim foi bom, pois tive alguma luminosidade para me encontrar com meu companheiro de viagem Gabriel Garcia Marquês. Foi com aquela luz bruxoleante e o livro aberto que eu matei a charada! A Igreja-dos-campanários-de-bruxa, a praça da matança, o dilúvio que não passava, a magia e o mistério no ar, era na cidade de Macondo, de “Cem anos de Solidão”, que eu pensava quando vi Samba-Caju pela primeira vez. Daí pra frente, toda vez que eu abria o livro, Macondo se travestia em Samba-Caju e esta me acompanhou até o seu final. Adormeci sonhando que estava na casa dos fantásticos personagens da família Buendía.

Tempestade na noite escura.
Pousada “Buendía” onde dormimos.

Ao acordar da minha especialíssima noite fantástico-imaginário-literária, vi que para os outros a noite não fora tão instigante quanto a minha. Um dos parceiros não conseguiu dormir por ter estranhado as acomodações, o outro acordou no meio da noite sufocado pela sensação de prisão que o quarto tinha e entrou em uma espiral de claustrofobia achando que o candeeiro estava queimando todo o ar do quarto. Então, em um extremo esforço de sobrevivência, arrastou-se penosamente até o local da chama assassina, apagando-a já no limiar de suas forças.

Ao saber desta história tresloucada eu lhe disse que não havia tido problemas pois soubera como usar o candeeiro.
– E como você usou este negócio, então? Perguntou meu parceiro interessado.
– Ora, foi só calcular o volume do quarto e controlar a respiração para que o ar tivesse sido suficiente para mim e o candeeiro durante a noite. Disse eu.

Deixamos para traz Macondo, quer dizer Samba-Caju, alguns aliviados, eu agradecido pela experiência vivida e continuamos a trabalhar na estrada pela manhã quando o Sol nem sequer havia saindo (seis horas da manhã ainda estava escuro). Esta não estava oferecendo as mesmas condições de tráfego que antes de Samba-Caju. Chegamos a ponte metálica sobre o rio Cuzo, que não dava a mínima condição de travessia. Almoçamos neste local e pegamos um desvio que dava acesso a outra pequena ponte provisória. Neste desvio foi que a nossa viagem/trabalho se tornou uma autêntica aventura off-road. A tempestade da noite anterior caiu forte sobre o desvio e o material de seu leito era extremamente argiloso. O resultado foi uma autêntica dança das carrinhas e de nossa Nissan Patrol. Foi um tal de escorregar, andar de lado e atolar até chegar na ponte. Apesar de todas as dificuldades passamos por ela. Coisa que não aconteceu com um certo usuário peso-pesado, conforme a foto.


Aventura off-road.

Este não passou pela ponte.

Quando passamos, desci para fotografar. Não vi que depois que todos passaram, houve uma debandada geral de quem estava fora para dentro dos veículos. Repentinamente as buzinas começaram a tocar e quando olhei, todos estavam fazendo sinal para eu entrar e fechar a porta. Em um instante de hesitação, fiquei rodeado por insetos grandes. Com um salto entrei no carro efechei a porta. Vi quando eles pregaram no vidro. E aí tive a noção de quem estava me assediando. Nada mais, nada menos que as moscas Tsé-Tsé, as populares moscas do sono. Segundo lembrança da escola aquelas gracinhas transmitem uma doença que deixa a criatura moribunda de tanto dormir e termina matando o infeliz. Existem armadilhas para elas ao longo de toda a estrada. Batemos o interior da Patrol para ver se não havia entrado alguma. Tentei verificar para ver se havia algum indício de transmissão em mim. Nada percebi. Tratei de esquecer o episódio.

Armadilha para as Tse-Tsés.


Daí para frente tudo decorreu com calma até chegarmos a Lucala, ponto final deste troço (aqui não se chama trecho de estrada e sim troço), após uma odisséia de 194km de trabalho. Abastecemos as carrinhas e nos despedimos de Baba Jr, que não nos acompanharia na outra parte da jornada.

A ausência maior nesta viagem foram dos tão procurados elefantes, que nós não sabemos se não apareceram, ou se não conseguimos ver devido ao intenso matagal que ladeava a estrada.


Onde estão os Elefantes?

Prosseguimos na EN-230 em direção ao Alto Dondo onde, iríamos fazer a base em Cambambe para levantar o troço Desvio da Munenga-Calulo, com uma extensão de 48 km.

Cabambe para quem não lembra, é a vila de arquitetura arrojada, que serve aos moradores que operam a barragem do rio Kwanza e fez parte da Crônica 8. Ficamos 2 dias lá e exploramos ainda mais a vila. Descobrimos uma exposição de blindados relíquias da guerra que nos permitiu fazer algumas brincadeiras como as das fotos.




Brincadeiras perigosas.


Mais ao fundo vimos as ruínas de um forte construído no século XVI e, é claro, fomos explorá-las. Dentro do forte havia uma capela em ruínas que nos fascinou e deve impressionar a você também. Veja as fotos.




Entrada do Forte.

Ruinas da Capela.


Entrada

Entrando…


Olhando a esquerda.

Altar com cruz de pedra.



Ostensório

Vista do Altar para entrada.


Olhando a esquerda no altar.

Sepultura.

Vista da parte superior.

Janela central.

Saída lateral direita


Não tenho muito o que falar sobre o levantamento final, a não ser que apesar de serem só 48 km, tecnicamente foi bem mais difícil de se trabalhar que os primeiros 194 km. Apenas um e relevante fato deve ser notado, exatamente para concluir este relato. Uma das dificuldades deste troço era a mesma do anterior. O matagal alto e denso, que não permitia ver nada além dele. Só que este produzia algo “sui generis” que serviu para aliviar o stress que a dificuldade no trabalho gerava. Flores, muitas flores amarelas, que pareciam grandes margaridas a tomar conta do matagal e fazer com que a estrada se tornasse um imenso corredor florido.